quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Crônicas do Irani (2)
Fala Antônio Martins
Fabrício das Neves

 Antônio Martins Fabrício das Neves. Irani, 2007. Foto: Margaret Grando

No dia 17 de outubro de 1990, o senhor Antônio Martins Fabrício das Neves foi entrevistado pela professora Eunice Cadore Franzack em sua residência na Fazenda Bela Vista, no Irani-SC. A entrevista gravada foi transcrita por Dylce Joana Weirich e se encontra no Museu Histórico de Concórdia-SC.
Nascido em 13 de junho de 1922, filho de João Damas Fabrício das Neves e de dona Gertrudes Martins de Lima, Antônio cresceu ouvindo relatos do entrevero e seus personagens. Nos anos 1930 ele colocou em versos as informações recolhidas.

O que ele diz sobre José Maria, José Fabrício das Neves e o combate de 1912?

Fabrício era “um dos de mais confiança” do monge. “Até o José Maria disse que ajudou muito ele nesse ideal de colonização, então depois ficaram muito conhecidos, muito amigos. O José Maria tinha ele como um assessor dele, mas um assessorava o outro porque não tinha um posto maior que o outro”.

No dia do combate José Maria disse a José Fabrício “que se era para morrer gente ele ia morrer”, pois não ia deixar “essa coloniada tudo aí na frente e eu ficar lá atrás, e nós temos que ir na frente”.

José Maria “não falava” do monge João Maria, “nunca falou”. Era uma “pessoa que só pensava para o bem, ele, acho que ele era mesmo um legítimo monge”. Era um “um homem muito inteligente, muito, ele falava onze línguas e rezava uma missa como os padres antigos rezavam”. Rezou uma missa no Irani antes da batalha. “Diz que previu que ia morrer por que ele disse para o Fabrício – eu vou morrer, mas você não passe do meu sangue que você vai ser um herói no mato. Agora se você vai para a cidade... No campo você vai ser um gato, no mato você é uma onça e no campo você é um gato. Não passe”.

Disse ainda José Maria a José Fabrício: “Venha até onde nós brigamos e vencemos e volte para trás, não passe do nosso sangue que nós derramamos. Mesmo porque daí você só vai mal. No mato você é uma onça e lá no campo você é um gato. Então, respeite isso aí. E foi o que aconteceu, o Fabrício se iludiu, passou, e aconteceu terminando morrendo”. Nos versos que escreveu Antônio se refere a tigre no lugar de onça.

Num determinado momento Eunice pergunta qual o motivo do Combate do Irani. Segundo Antônio, circulam “muitas idéias” a respeito, “mas o que o povo sem estudo aqui previa no mato eu concordo que eles estavam certos”. Ou seja, “havia qualquer interesse sobre aquele terreno, e esses general lá, esses comandante do Exército”, precisavam de um motivo “para não vir simplesmente vir aqui matar ou fazer o que eles queriam, inventaram aquilo”. Inventaram que “estavam formando um reduto de jagunço, a santidade”, o que provocou “um escândalo aqui no sertão”.

Segundo o depoente, “não era verdade”, porque “esse José Maria era um homem de muito estudo de muito respeito, e eles tinham ele como um bandido, mas bandido que não tinha morte, não houve nada”. Existiam na época “centros de colonos trabalhando com eles aí a espera da iniciativa que eles tinham. Então eu acho que nesse combate aí havia algum interesse particular”. De quem? Pergunta a professora Eunice. “Eu acho que de alguns prevendo não deixar eles fazer o que eles queriam”, destaca, “que era a posse da terra para todo mundo”.

Naquele tempo, observa Antônio Martins Fabrício das Neves, nas regiões de Palmas, Curitibanos e “na costa do mar”, “já tinha essa gente muito rica, tinha esses donos que trabalhavam na estrada de ferro, porque eles já queriam colonizar. Então eu acredito que o pessoal ficou nessa suspeita, que houve isso por causa do próprio terreno, não foi por outra coisa”.

Questionado sobre problemas ocorridos em Palmas quando um grupo de moradores foi buscar títulos de terras, Antônio confirmou que o cartório de Palmas pediu que José Fabrício fosse até lá, que “ajudava e fazia o possível de documentar todo esse pessoal que ele levasse”. Porém, continua, “o interesse de outra gente, de algum, o interesse de algum outro pegar aquela frente que o Fabrício estava praticando, para fazer a colonização. Tudo isso era o nosso povo, a fabriciada daqui como a senhora dizia, ficou nessa suspeita, e eu concordo com eles que isso quase que seria uma realidade”.

Um dos autores mais respeitados no tema Contestado, Maurício Vinhas de Queiroz, parece ter bebido na mesma fonte do senhor Antônio Martins Fabrício das Neves para escrever o capítulo sobre o Combate do Irani em seu livro “Messianismo e conflito social”.

Neste livro, resultado de pesquisas entre os anos de 1953 e 1961, Queiroz enfatiza a ocupação dos campos do Irani por famílias vindas do Rio Grande do Sul após a Revolução Federalista e os interesses do coronelismo de Palmas. “José Maria há muito conhecia o povo do Irani. Considerava-o sua gente. Não é de estranhar que, perseguido” em Santa Catarina, “tenha surgido” em outubro de 1912 “no chamado Faxinal dos Fabrícios”. (QUEIROZ, p. 91-92) (Por Celso Martins, outubro de 2011)

Fontes
1) Transcrição da entrevista de Antônio Martins Fabrício das Neves a professora Eunice Cadore Franzack (Fazenda Bela Vista, Irani-SC), em 17 de outubro de 1990, existente no Museu Histórico de Concórdia-SC.
2) QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social – A guerra sertaneja do Contestado. São Paulo: Ática, 1981. 

José Fabrício das Neves (a direita, de branco) com seu estado-maior em Catanduva-SC (1919). Reprodução: Celso Martins. Acervo: Cecília B. Talim (Concórdia-SC). 

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

 O COMBATE DO IRANI

 Cemitério do Contestado no Irani. Novembro de 2011. Foto: Celso Martins

Apresentação

Iniciamos a publicação de uma série de “Crônicas do Irani” discutindo alguns momentos do Combate de 1912 no Banhado Grande do Irani, marco inicial da Guerra do Contestado.
Não se trata de uma compilação de informações publicadas em outras fontes. As bases da série são 30 entrevistas com antigos moradores do Meio Oeste catarinense e do Sudoeste do Paraná, um depoimento do Sr. Antônio Martins Fabrício das Neves ao Museu Histórico de Concórdia e o Processo do Irani (518 páginas) cedido pelo professor Paulo Pinheiro Machado (UFSC).
O uso destas fontes levou à construção de outra “história” do Combate do Irani, revelando personagens quase absolutamente desconhecidos e ausentes da historiografia do Contestado, e os elementos motivadores: a luta pela terra e não por questões de limites entre Santa Catarina e Paraná.
Grato
Celso Martins



Crônicas do Irani (1)
Motivações de um combate

Por Celso Martins*

Ao longo do ano permanecem discretas, com suas folhas alongadas e pontudas, mas quando chega a Primavera e se aproxima o dia de Finados, as flores brotam com uma singela exuberância, enfeitando o Cemitério do Contestado, no município do Irani, região do meio-oeste catarinense. Ao lado existe um museu e, mais adiante, o local do combate de 22 de outubro de 1912, estabelecido pela historiografia como o marco inicial da Guerra do Contestado.

O lugar é conhecido como Banhado Grande do Irani, Faxinal dos Fabrício, símbolo da presença das famílias vindas da região de Passo Fundo-RS, entre fins do século 19 e início do século 20, área indicada a eles por um “monge” – entre os rios do Peixe, Iguaçu e Uruguai. Quase todos estiveram envolvidos nas lutas ocorridas no Sul do Brasil entre os anos de 1893 e 1895, episódio conhecido como Revolução Federalista.
Eram quase todos, maragatos ou federalistas, antigos liberais no Império, muitos dos quais pegaram em armas contra o domínio de Júlio de Castilhos. Derrotados e perseguidos de alguma forma no pós-conflito, buscaram refúgio nos campos do Irani, entre Concórdia-SC e Palmas-PR, dedicando-se ao plantio de milho associado à criação de porcos, à pecuária, à extração da erva-mate e a coleta do nó-de-pinho. Adotavam a antiga religiosidade católica simbolizada pelo culto a São João e ao Divino Espírito Santo.

A prosperidade e a paz iniciais foram quebradas por um fenômeno chamado capitalismo, momento em que a terra que tinha valor de uso passa a ter valor de mercado. As mesmas terras que antes pertenciam à União (Império), com a República passam às mãos dos estados e rapidamente repassadas a empresas interessadas na colonização e na exploração das riquezas naturais, sobretudo a madeira, os pinheirais.

Os antigos habitantes da região, brasileiros outrora estimulados pela política oficial do uti possidetis, ou a posse como garantia de ocupação e conquista de territórios reivindicados pela Argentina, tiveram seu modo de vida desestruturado, as relações sociais como as de compadrio abaladas ou mesmo rompidas em muitos casos. O caboclo que garantiu aquelas terras para a Nação, fonte de fartura alimentar, vestuário e moradia, se vê ameaçado em seu presente e futuro.

Não são apenas os ecos da modernidade que chegam aos sertões. As bases desta mesma modernidade, ou do capitalismo nascente, se transferem para estas áreas anteriormente “esquecidas” pelo poder público e pela própria Nação. É o fermento da revolta. João Maria anunciara o Apocalipse próximo em suas peregrinações, fizera profecias do que estaria por vir – a ferrovia, a extração mecânica de uma quantidade descomunal de pinheiros e outras árvores nobres, o cercamento e a demarcação das terras e sua venda a famílias vindas do Rio Grande do Sul.

Momento em que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, como dizia Marx, ou seja, quando nada do que foi será, o prolongado instante de transformação da paisagem, dos hábitos e costumes, das relações familiares, religiosas, sociais e econômicas.

Com os homens e mulheres do Irani as coisas não foram diferentes. Fazendeiros de Palmas, então a região mais importante do interior do Paraná, escrituram as terras dos campos de Palmas até o rio Uruguai. Entre estes “posseiros” estão os Fabrício das Neves, sobretudo José, parceiro de José Maria de Castro Agostinho. Ao contrário do que a historiografia e as más-línguas tentam impor, José Maria não era nenhum desequilibrado, não existem provas de ser desertor, nem de defloramento em Palmas.

 
Invasão

O que temos são relatos como os de Antônio Martins Fabrício das Neves, confirmando a presença de José Maria entre os moradores do Irani. Também existem registros de sua presença em Palmas e outras cidades do Paraná. Outros relatos situam o monge como amigo do coronel Miguel Fragoso, na região de Engenho Velho, atual Concórdia. Sua presença em Campos Novos se dá apenas em fins de 1911, depois vai a Taquaruçu (Curitibanos), onde fica até setembro, quando volta ao Irani.

José Fabrício estava com ele e oferece hospedagem ao grupo de 40 pessoas, aproximadamente. Em seguida todos se estabelecem na casa de Thomaz Fabrício das Neves (irmão de José Fabrício), seguindo por último para a residência de  um tio de ambos, Miguel Fabrício das Neves, onde se estabelece o reduto.

A chegada de José Maria no Irani, disposto a resistir às ameaças de expulsão das famílias ali estabelecidas, foi a senha para que os fazendeiros de Palmas entupissem os jornais de Curitiba alarmando a população: tratava-se de uma invasão de catarinenses ao território paranaense visando forçar o cumprimento de sentenças judiciais entregando a região ao estado vizinho, Santa Catarina. Criou-se um estado de comoção. Estudos realizados no Paraná indicam a intensidade da campanha desenvolvida a partir de Palmas.

A partida da força policial do Paraná para a região do Irani, sob o comando do coronel João Gualberto, oficial ilustre e de largo preparo militar, representou a oportunidade para os fazendeiros de Palmas se verem livres dos “posseiros” dos campos do Irani. A antiga Questão de Limites foi usada com habilidade para a consecução de objetivos escusos. O coronelismo nascente e dominante na Primeira República dava as cartas, como deu as cartas em todo o episódio do Contestado, envolvendo os militares na carnificina e, mais recentemente, culpando a ferrovia por tudo que aconteceu na região.

As flores que anualmente inundam de branco o Cemitério do Contestado no Irani, lançam os primeiros brotos por volta do dia 22 de outubro, como a homenagear os combatentes mortos há 99 anos. As pontas das folhas que terminam em espinhos abdicam do aspecto ameaçador exatamente nesse período em que lembra os mortos. A vida celebrando aquele que deu a vida na defesa de seu chão.  (Por Celso Martins, outubro de 2011)

Fonte
MARTINS, Celso. O mato do tigre e o campo do gato. José Fabrício das Neves e o Combate do Irani. Florianópolis: Insular, 2007.

*Celso Martins da Silveira Júnior, Laguna-SC, 23.11.1955. Jornalista (desde 1976) e historiador (2003-2007, Udesc). Autor de “Os Comunas – Álvaro Ventura e o PCB Catarinense” (1995), “Farol de Santa Marta – A esquina do Atlântico”, (1997), “Aninha virou Anita” (1999), “Tabuleiro das Águas” (2001), “Os quatro cantos do Sol – Operação Barriga Verde” (2006) e  “O mato do tigre e o campo do gato – José Fabrício das Neves e o Combate do Irani” (2007), entre outros. Atuou nos seguintes veículos: jornais O Estado, A Notícia, Jornal de Santa Catarina, A Gazeta, Bom Dia Domingo, Diário Catarinense (Diários Associados) em Florianópolis e diário Extra de Joinville; revista Mural; rádio Guarujá; TV Barriga Verde. Contato: celsodasilveira@gmail.com.