segunda-feira, 22 de outubro de 2012

CARTA DO IRANI DENUNCIA
ABANDONO DA MEMÓRIA
DA GUERRA DO CONTESTADO


Patrimônio material e imaterial e as
populações remanescentes em risco


O atendimento às populações tradicionais remanescentes do Contestado, a guarda e preservação da memória física do conflito, além do seu acervo documental, estão entre as indicações da Carta do Irani, que acaba de ser divulgada.
“Como resultado da sessão de Chapecó do Simpósio do Centenário do Movimento do Contestado, publicamos a Carta do Irani, como uma mensagem política a respeito da situação das populações remanescentes, das fontes, acervos e dos locais de memória do Contestado”, resume o professor Paulo Pinheiro Machado, um dos coordenadores do evento e que encaminhou o documento ao Daqui na Rede.
Abaixo, na íntegra, o documento que tem a chancela da Universidade Federal da Fronteira Sul, Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal de Pelotas.

Carta do Irani

Nós, professores, estudantes e pesquisadores da área de História e demais Ciências Humanas, participando de três sessões (na UFSC, entre 29 de maio e 1 de junho; na UFPEL, entre 29 e 31 de agosto e na UFFS, entre 18 e 22 de outubro) do Simpósio sobre o Centenário do Movimento do Contestado, reunidos ao longo deste ano de 2012, preocupados com o estado e situação de acervos documentais, locais de memória, patrimônio histórico e da população remanescente do conflito do Contestado, alertamos a sociedade civil e conclamamos as autoridades públicas (órgãos de Patrimônio e Memória, Poder Executivo, Ministério Público e Poder Judiciário, das esferas municipais, Estaduais e Federal) para:

a). A premência da implementação de políticas públicas de saúde, educação e terras para a população remanescente do conflito, como forma de atendimento a cidadãos que, por gerações, estiveram marginalizados dos benefícios da sociedade brasileira. Considerando que os núcleos de remanescentes do conflito - e de população tradicional do planalto meridional em geral - apresentam atualmente os mais baixos índices de desenvolvimento humano do sul do Brasil (IDH, conforme avaliação oficial);

b). A urgência da defesa dos locais de memória e convivência das populações tradicionais remanescentes do conflito em Santa Catarina, e em maior âmbito, dos locais frequentados pelos devotos da tradição de São João Maria em todo o sul do Brasil. Atualmente muitas fontes de “águas santas”, grutas, ermidas, cruzeiros, antigos redutos, guardas e cemitérios precisam de defesa institucional e recuperação e conservação, como locais de visitação, culto, convivência e pesquisa científica;

c). A necessidade da localização, preservação, guarda e colocação à disposição de pesquisa de acervos documentais, de origem pública ou privada, compreendendo todo um repertório (de documentos, imagens, prosa, poesia, orações, pinturas, esculturas, objetos museológicos, depoimentos orais e peças audiovisuais) que tenham relação com a Guerra do Contestado e, num sentido mais amplo, sobre a vida, a sociedade e a cultura do planalto meridional brasileiro;

Acreditamos que é nossa obrigação, como professores, pesquisadores e estudantes, apontar as questões acima para que nos próximos 100 anos não tenhamos que lamentar a continuidade de situações de subalterização e marginalização de nossa pobre população que tanto trabalhou e trabalha para a edificação da nação.

Irani, 22 de outubro de 2012.

Assinam: Os participantes do Simpósio do Centenário do Movimento do Contestado: História, Memória, Sociedade e Cultura no Brasil Meridional, 1912 – 2012. Carta aprovada por aclamação na mesa final da sessão de Chapecó – UFFS.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

 .

Crônicas do Irani (6)
José Fabrício das Neves
e o cerco de Santa Maria


 
O livro já estava circulando e eu prosseguindo com as pesquisas, quando me deparei com duas referências do general Setembrino de Carvalho, a respeito de José Fabrício, durante o cerco a Santa Maria, em 1915, fase final do movimento.

Apenas para nos situarmos, o conflito teve, a grosso modo, a seguinte seqüência: depois do combate do Irani (1912), o movimento recomeça no final de 1913, no reduto de Taquaruçu (hoje Fraiburgo), depois o reduto de Caraguatá e, por fim, o maior de todos, com cerca de cinco mil edificações, o de Santa Maria (1915).

Esses eram os redutos principais, mas existiram dezenas, menores. Entre 1913 e 1915, até o cerco de Santa Maria, executado meticulosamente por Setembrino de Carvalho, os rebeldes conquistaram uma ampla área no vale do rio do Peixe, mobilizando cerca de 20 mil pessoas.
 

“Notícias apavorantes”

O cerco a Santa Maria implicou o corte no fornecimento de gêneros, levando fome e o surgimento de doenças, e a conquista dos redutos satélites. Em seu “Relatório”, o general Setembrino informa que na véspera do ataque final a Santa Maria, surgiram “notícias apavorantes sobre nova revolta nas bandas do Irani”.

Por causa disso, em março de 1915, expõe ao Ministro da Guerra: “Espero reduzir os bandoleiros do Santa Maria antes que aperte o frio. Mas como não há certeza da terminação da luta com a sua queda definitiva, porque se anuncia outro levante nas bandas do Irani, desejo aparelhar a tropa de recursos que a garantam contra os rigores do inverno”. (SETEMBRINO, 1915, p. 124)

Dessa vez foi a Fundação Getúlio Vargas (CPDOC), que forneceu as evidências complementares: telegramas trocados entre o então Chefe de Polícia do Paraná, Vieira Albuquerque, e Setembrino de Carvalho, relacionados aos fatos no Irani. Nunca é demais lembrar que só depois de 1916, um ano depois, é que o Estado de Santa Catarina passa a administrar toda a região a oeste do rio do Peixe, onde estão os campos de Palmas/Irani.

Tudo começou com um telegrama do Chefe de Polícia ao general Setembrino, com base em informações transmitidas pelo subdelegado do rio do Peixe, Gonçalino Silva. “Infelizmente foram baldados todos esforços sentido manter sertão pacificado. José Fabrício está aliciando elementos dispondo seiscentos tantas Winchester. Ainda não fez hostilidades estando concentrados barra Jacutinga”. (Telegrama de Vieira Cavalcanti a Setembrino de Carvalho)


 “Levante próximo”

O Chefe de Polícia determinou então que o subdelegado Gonçalino reunisse forças e efetuasse a prisão de José Fabrício. O policial respondeu imediatamente por telegrama: “Cientifico não dispor elementos efetuar-se prisão José Fabrício. Individuo conta superior recursos meu contingente”. E que aguardava ordens do Chefe de Polícia. (Telegrama do subdelegado Gonçalino Silva a Setembrino de Carvalho).

São com esses (e outros) elementos que trabalho no momento. Os arquivos do Exército (Rio) e do Paraná (Palmas, Curitiba) devem conter outras referências. Seu objetivo era romper o cerco de Santa Maria, com a passagem dos combatentes para os campos de Palmas/Irani, no outro lado do vale do rio do Peixe.

José Fabrício não foi batido nessa ocasião, como nos confirma a Mensagem Anual do governador Hercílio Luz encaminhado ao legislativo. Diz que ao assumir em 28 de setembro de 1918, “a situação no município de Cruzeiro era causa das maiores e justificadas apreensões”. Boatos, segundo ele, “os mais desencontrados e aterradores pareciam indicar um levante próximo de elementos perniciosos a frente dos quais se encontraria José Fabrício das Neves”. Tudo isso torna mais evidente a importância do aprofundamento das pesquisas, a diversificação das fontes e a releitura do que se escreveu sobre o tema Contestado.

O tema é abordado por Demerval Peixoto em Campanha do Contestado – A Grande Ofensiva. Informa que após duas semanas de bombardeio sobre o reduto de Santa Maria, “os prisioneiros e fugitivos confirmavam uma pretendida mudança” do referido do reduto “para os campos do Irani”.

Peixoto assinala que “estariam apertados pela fome e pretendiam varar em picadas esquisitas, por onde poderiam seguir, sem risco de serem vistos, até alcançar os passos do Rio do Peixe”. E qual foi a reação dos militares, conforme o autor citado? Mandar fechar os passos do Rio do Peixe. A estrada Calmon a Perdizes foi ocupada pela cavalaria. Um regimento de cavalaria se manteve nos campos do Corisco. O arraial de Cima de Serra ficou guarnecido por um continente militar. Em frente as furnas do Santo duas companhias.

Também foram guarnecidos o hospital de sangue no arraial de Perdizes e o centro de abastecimento da coluna e a fazenda do Claudiano onde se localizava o campo de aviação. No rio Tigre permaneceu meio esquadrão e, no Lageado, um esquadrão. “Eram esses os pontos guarnecidos da linha que passou a ser percorrida pelo contingente do tenente coronel Paiva. O capitão Pará ficou com sua força junto ao grosso da coluna, na Tapera”.

Em resumo ficou guarnecida a linha Calmon – Cruzeiro – Perdizes – Luiz de Souza – Cima da Serra – Corisco, “numa extensão de cem quilômetros noroeste para sudeste. Era toda a frente da linha sul nos últimos dias de Santa Maria”. (PEIXOTO, 1995, p.98-99)

Aliás, as preocupações com os campos de Palmas e do Irani estiveram presentes desde o primeiro momento da presença do general Setembrino de Carvalho na região, responsável a partir de 1914 pela mais dura repressão ao movimento do Contestado. O medo de que os rebeldes deixem o vale do rio do Peixe condiciona a estratégia adotada. Uma das primeiras providências que tomou foi buscar garantir a estrada de ferro e suas estações de eventuais ataques dos caboclos, “impedindo-lhes ao mesmo tempo a passagem para os campos de Palmas de do Irani. Daí a necessidade de um comando geral”, constituído naquele momento. (CARVALHO, 1915, p. 42)  

Podemos concluir que José Fabrício das Neves e outros moradores dos campos do Irani permaneceram todo o tempo em contato com as lideranças do movimento do Contestado no vale do rio do Peixe. Ou seja, estamos diante de um grupo de combatentes destacados do movimento do Contestado completamente ignorados pela historiografia do tema, sobretudo José Fabrício. (Por Celso Martins, outubro de 2011)




Fontes

1. PEIXOTO, Demerval. Campanha do Contestado – A Grande Ofensiva, v.3. Curitiba: Fundação Cultural, 1995.
2. LUZ, Hercílio. Mensagem Anual. 1919. Biblioteca da Alesc. 
3. CARVALHO, Setembrino de. Relatório apresentado ao general José Caetano de Faria, ministro da Guerra, pelo comandante das forças em operação de guerra no Contestado. Rio de Janeiro: Imprensa Militar, 1915.
4. Telegrama nº 569, de 4.3.1915, do Chefe de Polícia do Paraná, Vieira Cavalcanti, ao general Setembrino de Carvalho. CPDOC-FGV/FSC 15.03.04/5 – T. 7 antigo A 43.
5. Telegrama nº 10, de 5.3.1915, do subdelegado Gonçalino Silva ao general Setembrino de Carvalho. CPDOC-FGV/FSC 15.03.04/2 – T. 7 antigo A 43.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011


Crônicas do Irani (5) 
Personagens do 
Combate de 1912

 
 José Fabrício (dir) e um Miguel. Acervo: Reinaldo Antunes. Reprodução: Celso Martins

Alguns personagens do Combate do Irani precisam ser lembrados.

É preciso que se repare a injustiça feita contra essa gente, acusada de tudo de ruim que se possa imaginar.

São pessoas que nada mais fizeram do que defender as terras de onde tiravam o sustento de suas famílias.

Não eram marginais ou bandoleiros, mas passaram à história como se tivessem sido.

Estamos falando de pessoas cujos descendentes ainda residem no Irani e região, ou foram para o Sudoeste do Paraná e outras áreas.

Muitos tiveram que adotar outros sobrenomes, como os Antunes das Neves, descendentes diretos de José Fabrício das Neves que residem em Pinhão-PR. O mesmo fizeram alguns filhos de Thomaz Fabrício das Neves, irmão de José, na região de Palmas.

Em relação a José Fabrício das Neves vimos sua parceria com José Maria e seu papel destacado no Combate. Vamos ver a seguir sua presença no restante do Movimento do Contestado.

Sabemos que nasceu na região de Passo Fundo-RS, onde aos 13 anos participava de combates da Revolução Federalista (1893-1895), ao lado dos maragatos. Foi emboscado e morto em 1925. A sepultura pode ser visitada nas margens do rio Irani, no município de Vargem Bonita.

Fornecemos a seguir uma espécie de “lista” de alguns indiciados no Inquérito que gerou o Processo do Irani, aberto em Palmas no dia seguinte ao do combate. São vários objetivos ao se enfatizar a “lista”. Em primeiro lugar destacar os combatentes de uma luta pela terra, amparados na fé católica e na religiosidade de São João Maria.

Em segundo estimular os descendentes destas pessoas a contribuir com a memória do combate. Muitos não o fazem por vergonha desse passado, mas a maioria por não saber dar o devido valor a uma fotografia, uma carta, uma oração, uma lembrança dos mais antigos ou relatos ouvidos na infância.

José Alves Perão, combatente do Contestado.
Acervo: Vicente Telles. Reprodução: Celso Martins

A “lista”

José Alves Perão, conhecido por José Felisberto, foi participante ativo e uma espécie de braço direito de José Fabrício, antes, durante e depois do combate. Seu irmão Elizeu também participou. Havia outro irmão, Desidério, e a mãe deles, dona Joana. Os Perão têm origem na Argentina com o sobrenome Perón, depois aportuguesado. Existe a versão Perone ligada ao mesmo Perón/Perão.

A família Belchior também esteve presente, como Cândido, Antônio, João e Manoel.

Bento Manoel dos Santos era o chefe de numerosa família. Conhecido por Bento Quitério. É referido por vários historiadores, pois foi ao lado da sua casa que João Gualberto montou a metralhadora. E foi onde também morreu. Um filho de Bento, Felipe, morreu em combate e foi sepultado no antigo cemitério do Irani. Outro filho, Alfredo, teve participação ativa. Saturnino Manoel dos Santos, irmão de Bento, também estava no combate.

O coronel da Guarda Nacional Miguel Fragoso, paranaense estabelecido no Engenho Velho (Concórdia), e antigo maragato, se deslocou ao Irani com dezenas de homens armados em socorro de José Maria. Mais tarde um filho de Miguel, Chico Fragoso, morou e se casou no Irani. Seus descendentes estão em Coronel Domingos Soares e Palmas.

Outros Fabrício das Neves são: Miguel (tio de José e de Thomaz). Thomaz, irmão de José. Clementino (secretário de José Maria), Antônio (possivelmente o pai de José e Thomaz). Gabriel Fabrício das Neves não foi indiciado, mas seu nome é citado como apoiador por Maurício Vinhas de Queiroz. O mesmo acontece com o pai de Antônio Martins Fabrício das Neves, a quem nos referimos em Crônicas do Irani 2.

Os Lemos também estiverem presentes no combate, como Francisco e João Lemos.
José Fabrício e seus homens em Catanduva-SC, c. 1921.
Acervo: Reinaldo Antunes. Reprodução: Celso Martins

Sobre várias pessoas não encontramos maiores referências ou descendentes, como: Firmino Sapateiro, Luiz (indicado como filho de João Luiz), João Venerando, Paulo Ramos, Estanislau Borges, Raphael de Brum, Sÿnfronio Honorato do Canto, Sebastião Lageano, Sebastião Vicente, Sebastião Baiano, Venâncio Lageano, Veríssimo de Faria, Benedicto Teixeira Guimarães, Emiliano Glória, João e Joaquim Bello, Joaquim Antônio Santiago, Mathias Ermelindo, Manoel Barreto, Francisco Maria, João Vermelho, Joaquim Germano, Joaquim Gomes e José Clementino.  Muitos desses homens podem não ser do Irani e seu sertão, Queimados (atual Concórdia).

Elizeu Perão e família. Acervo: Vicente Telles. Reprodução: Celso Martins

A história

É preciso esclarecer que nem tudo na História é permanente e definitivo. Existem problemas a serem resolvidos. Que a Guerra do Contestado aconteceu ninguém duvida, está fartamente provado e documentado, guardado na memória, mas quando passamos para as suas causas surgem os problemas.

Como toda ação humana, escrever é um ato cultural, uma construção, um parecer a partir das fontes, informações reunidas e da visão de mundo/ideologia do autor que condiciona o enfoque. 

No caso do Contestado vamos citar uma seqüência de expressões e adjetivos dos que escreveram sobre o tema, esclarecer do que estamos falando.

Setembrino de Carvalho, 1915
Fanáticos, inimigo, bandoleiros, carolas, criminoso aldeamento, banditismo, ousadia feroz, movimento revolucionário, matutos, jagunços, desordeiros, sedição, populações ignorantes, fanatismo funesto, antros criminosos, falsa religião, segregados dos centros de civilização, hidra da anarquia, perturbadores da ordem republicana, patrícios transviados da lei.

Demerval Peixoto, 1916
Afamado antro de bandidos, facínoras, degenerados, índio feroz, entes desgraçados, covil afamado, entes desgarrados, aluvião de infelizes, irmãos enlouquecidos das selvas, matutada, brasileiros transviados, movimento de bandoleiros, astuta matutada. Sertanejo semi-bárbaro, esqueléticos caipiras, combatentes pecadores, meliantes, tabaréus, malfeitores, traiçoeiros e sanguinários.

José Herculano Teixeira d’Assumpção, 1917
José Maria: perfeito farsante, pseudo-irmão de João Maria, pseudo-asceta, inteligente, desertor, satisfazia seus cúpidos desejos em algumas ingênuas donzelas sertanejas.

Oswaldo Rodrigues Cabral, 1979
Grupo de sertanejos, fé exaltada e desviada da ortodoxia católica, monge ignorado e ignorante, sertanejos rudes, monge estranho, fanatismo, doutrinas sediciosas, rebelião, crime, loucura, sertanejo rebelado, fanatismo religioso, doutrinas subversivas, bando de rústicos, bando de fanáticos, jagunços. Sobre José Maria: impostor, taumaturgo.  

Maurício Vinhas de Queiroz, 1981
Homem, curandeiro de ervas, sertanejos, messias, ajuntamento de povo, discípulos, místico retorno, acampamento religioso, adeptos de José Maria, ninho de guerrilheiros, movimento messiânico do Contestado, massas camponesas, direito de terras.

Ivone Gallo, 1999
Movimento popular, eremita, andarilho, profeta, curandeiro, milenarismo, revoltosos, rebeldes, excluídos, guerra sertaneja, caboclos, lideranças do Contestado.

Delmir Valentini, 2003
Sertanejos, José Maria e seus seguidores, movimento, fraternidade, líderes, exaltação mística, sonho da convivência fraterna, pessoas nos redutos, comandante José Maria.

Paulo Pinheiro Machado, 2004
Sertanejos seguidores do monge, lideranças sertanejas, movimento social do Contestado, características místicas, exaltação milenar, messianismo, líderes do reduto, movimento rebelde. (Por Celso Martins, outubro de 2011)

Thomaz Fabrício das Neves e família. Irani-SC,
década de 1920. Reprodução: Celso Martins

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

 Combate-no-Irani. Óleo de Daniel Freire. Acervo PMPr. Reprodução Celso Martins.
A foto mostra o cel. João Gualberto à frente do combate em 22 de outubro de 1912. 

Crônicas do Irani (4)
    Combate frente a frente

Por Celso Martins

No reduto do Irani ocorreram conversações visando à retirada de José Maria e sua gente. O monge teria aceitado a proposta apresentada por seu amigo coronel Domingos Soares. A decisão não foi bem recebida pelos demais. Realizada uma espécie de assembléia geral, foi aprovada a proposta de José Fabrício das Neves de que todos permanecessem no local e recebessem a força policial à bala. Dito e feito!

Bem antes do amanhecer do dia 22 de outubro de 1912, as forças policiais já ocupavam terreno na região do Banhado Grande. Três casas pertencentes à família Santos (Bento Quitério) foram ocupadas. “Feito o cerco das referidas casas alguém atirou do mato sobre a nossa gente, ao que não se ligou importância”, escreveu ao governador do Paraná, dois dias depois, o chefe de polícia Vieira Cavalcanti. Achavam que o tiro fora disparado por algum caçador. “Novos tiros partiram sobre as praças que guarneciam uma das casas”.

Seguiu-se um tiroteio de cerca de cinco minutos entre as tropas e o grupo armado de oito a 10 homens que “corriam em direção à mata oposta”. E quem eram estes homens? José Fabrício das Neves era o comandante. Outros Fabrícios e homens como José Alves Perão, conhecido por José Felisberto, estariam com ele.

Este primeiro ataque alarmou as forças policiais. Os soldados foram colocados em linha de combate. A famosa metralhadora estava num ponto alto, nas mãos de João Gualberto. Ele conseguiu efetuar os primeiros disparos, mas em seguida a arma emperrou. Foi nesse momento que surgiu do meio da floresta “à nossa frente, a cavalaria dos fanáticos”, acompanhada por “grosso contingente de gente a pé”, escreve o mesmo Vieira Cavalcanti. Esse ataque foi conduzido pessoalmente por José Maria que, segundo o Processo do Irani, usava um chapéu de cor vinho. “Essa multidão”, diz, “calculada em número superior a 300, avançava para a nossa força como uma verdadeira avalanche afrontando a nossa fuzilaria que desde o começo era cerrada e contínua”.

Estamos usando a narrativa oficial do combate pelo seguinte motivo: se tivesse havido uma emboscada, como sugerem no próprio Irani, ela estaria registrada.

Continua Vieira Cavalcanti: “Os fanáticos avançavam sempre saltando sobre os cadáveres de seus companheiros e pouco se importando com a fuzilaria que abria claros enormes em suas fileiras”. Foi assim que alcançaram “as primeiras fileiras da nossa vanguarda e desembainhando seus facões, começaram a mais tremenda carnificina que se pode dar”. Aconteceu então o chamado entrevero. Os soldados, sem munição, “passaram a brigar a coice de carabina”. A cavalaria, cuja munição fora tomada pelos rebeldes, se defendia com revólveres.

“Atacados fortemente pela frente”, reafirma Cavalcanti, a cavalaria sob o comando do tenente Busse recuou até a casa onde deveria estar o comandante João Gualberto. Se vendo cercados os homens fugiram, sendo perseguidos por cerca de 50 caboclos “que só não os alcançaram por estarem a pé”. Cerca de 40 carabinas foram deixadas para trás, alguns mosquetões e três mil cartuchos, mais a metralhadora com quatro fitas carregadas cada uma com 250 balas. (Relatório Setembrino, p. 183-184)

Outro depoimento insuspeito é do oficial da Policia Militar do Paraná, João Alves da Rosa Filho, autor do livro “Combate do Irani” (Curitiba, 1998).  Diz que após o primeiro ataque o comandante João Gualberto e alguns policiais foram colher e debulhar milho para dar aos cavalos. Foi nesse momento que aconteceu o segundo ataque. João Gualberto, sem poder usar a metralhadora disse aos soldados que estavam próximos: “Peguem as armas, meus filhos, pois estamos perdidos, mas tenham coragem”.

O mesmo Rosa Filho acrescenta que nesse momento, a uns 700 metros a frente da tropa, “num abrir e fechar de olhos começou a surgir uma verdadeira multidão de caboclos”, avançando sem “o menor receio”, tomados por uma espécie de “furor”. Eram cerca de 300, sendo que cerca de 100 faziam a vanguarda e o restante vinha a pé “correndo e dando gritos alucinantes”. À frente estava José Maria e seus Doze Pares de França. João Gualberto mandou abrir fogo mas, “apesar das descargas sucessivas dos milicianos, os fanáticos avançavam sem trepidar e sem ter um momento de vacilação”.

Desesperado, João Gualberto tentou mais uma vez fazer funcionar a metralhadora. Não conseguindo e, “mordendo-se de raiva”, observa Rosa Filho, apanhou a carabina de um soldado ferido e “passou a lutar” ao lado dos comandados. Diante da fuzilaria da polícia os atacantes pararam alguns momentos e aparentemente se dispersaram, voltando a reagrupar-se e “passando por cima dos que caíam, avançavam cada vez mais, com grande alarido”. Os caboclos avançaram sem piedade, armados de garruchas ou Winchester na mão esquerda e “na direita enormes facões”.

    Um pouco desorientados, os policiais resistiram. “Lutavam como podiam, defendendo-se a qualquer custo”. Gualberto ordenou o calar baioneta, mas elas não se fixavam nas presilhas dos sabres e “saltavam longe aos primeiros tiros”. Na seqüência veio o ataque corpo-a-corpo, disparos a queima-roupa, obrigando os policiais a uma atitude defensiva. Os Pares de França executavam pela primeira vez as suas “diabólicas cabriolas de esgrimistas”.

    Somente nos “últimos momentos da luta”, continua Rosa Filho, “quando os fanáticos já tinham convergido pela esquerda, atacando também pela retaguarda”, é que José Maria foi abatido a tiros pelo sargento Joaquim Virgílio da Rosa, morto em seguida.  A luta continuou e “ambos os lados combatiam com heroísmo e denodo”, observa o autor citado.

O coronel João Gualberto lutou bravamente. Inicialmente recebeu um tiro no peito, diz Rosa Filho. No Processo do Irani de 1912, aparece que o disparo foi dado por José Fabrício das Neves. Em seguida outros caboclos o “picaram” no facão, ou seja, “seu corpo foi estraçalhado a ponto de não ser reconhecido”. A versão que ficou, alimentada por Rosa Filho e outros autores, foi que José Fabrício deu o “golpe de misericórdia” ou matou João Gualberto. Ainda hoje, no site da Polícia Militar do Paraná, José Fabrício aparece como o “assassino” do coronel João Gualberto, quando vimos que sua morte ocorreu em meio a uma violenta batalha. (Outubro de 2011)

Fontes
CAVALCANTI, Vieira. Relatório do chefe de polícia Manoel Bernardino Vieira Cavalcanti Filho ao governador do Paraná Carlos Cavalcanti de Albuquerque. Palmas, 24 de outubro de 1912. In Relatório apresentado ao general José Caetano de Faria, ministro da Guerra, pelo comandante das forças em operação de guerra no Contestado, Setembrino de Carvalho. Rio de Janeiro: Imprensa Militar, 1915.
ROSA FILHO, João Alves. Combate do Irani. Associação da Vila Militar: Curitiba, 1998.


 Túmulo do combatente Neco Germano no Cemitério do
Contestado do Irani com a cruz missioneira. Foto: Celso Martins

Túmulo de José Maria no Irani. 2007. Foto: Celso Martins

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Escultura de Itacir Bortoloso. Portal Turístico de Porto União-SC. Foto: Celso Martins
 
Crônicas do Irani (3)
O território de José Maria

Considerado “fonte primária”, citado por quase todos os autores que abordaram o tema Contestado, os manuscritos de Alfredo de Oliveira Lemos, nascido em Campos Novos, 27 de janeiro de 1884, merecem alguns comentários. Lemos garante ter conhecido João Maria, e depois dele, José Maria. Crítico do levante caboclo, tendo colaborado com a repressão ao movimento, seu testemunho assume importância relevante.
Quando tinha 9 para 10 anos de idade João Maria apareceu em sua casa e tratou de sua mãe, dona Joana, permanecendo na região, “tendo desaparecido alguns anos depois”. (p. 15) Cerca de 15 anos depois “apareceu no sertão do Irani, Palmas, um homem com as vestes de João Maria; usava terno de brim grosseiro, boné de couro de jaguatirica”. (p. 16)
Diferentemente de João Maria, que usava “sandálias feitas por ele mesmo”, José calçava “chinelos com meias grossas por cima da calça; dizendo-se irmão de João Maria, chamava-se José Maria de Agostinho”. O autor indica o ano de 1912. “Em Irani”, prossegue, “ele começou curando com erva e muito logo correu a fama por toda a parte. E muito breve, tinha o seu grupo regular com instrução para a guerra. Imediatamente chegou ao conhecimento da polícia de Palmas que foi obrigada a dispersar o grupo, tendo desaparecido, para dali reaparecer em Campos Novos, na fazendo do coronel Francisco de Almeida”. (p. 16)
            Cabe destacar que estamos diante da segunda referência à presença de José Maria no Irani. Quanto a formação de um reduto, e a repressão policial vinda de Palmas, devemos lembrar a informação anterior (Crônicas 2) de Antônio Martins Fabrício das Neves, sobre a parceria de José Fabrício e José Maria no assentamento de famílias na região. Independente da necessidade de um maior aprofundamento do episódio, fica evidenciado o trânsito de José Maria nos campos do Irani.
            A historiadora paulista Ivone Gallo nos leva a Laranjeiras do Sul, no interior do Paraná, para falar de José Maria.
Vive bem vestido, carregando sabonetes, espelhos etc., para cuidar de si, aprecia a boa comida, bom chocolate, gostando de parar em casa de família, para ser tratado pelas mulheres a quem ele dá muitos conselhos! Homens e mulheres vão pedir-lhe receitas e orações, porém aprecia ele mais oferecer bordados e pinturas para as moças pois é bom pintor e bom de letra. Consta que este monge já saiu fugido de Palmas para a Mangueirinha que também teve o mesmo fim e só aqui é que tem sido bem hospedado”. (p. 83)
Na ocasião, em Laranjeiras do Sul, antiga Colônia Marechal Mallet, região acima de Pato Branco, José Maria “preconizou uma guerra fortíssima da qual ninguém escapará, por isso aconselhou o povo a fazer morada no centro do mato, não tendo caminho que possa sair para parte alguma e nas proximidades de um rio por ele indicado porque todos os bichos se mudarão para a colônia a fim de liquidar algumas pessoas que por ventura escaparem da referida guerra. Preconizou uma praga de gafanhotos com bicos de aço e asas também de aço, porém em forma de serras”. (p. 82-83) Gallo reproduz matéria publicada no jornal O Livre Pensador, de São Paulo-SP, de 13.1.1909, com o título “Um novo monge. Perigo social”.
A autora citada se refere a um processo em Palmas por rapto de moça, destacando que no Brasil “daquele tempos, o rapto de mulheres era uma prática comum e, em muitos casos, até o raptor podia contar com a anuência da vítima”. Por isso José Maria foi logo libertado “sob a promessa de casamento, coisa que não se realizou, não se sabe por que”. (Gallo, p. 83) Outros autores abordaram o tema.
            Ivone Gallo corrobora a informação de Maurício Vinhas de Queiroz em seu livro “Messianismo e conflito social”, de que “o monge também teria sofrido perseguições no Paraná, mais precisamente no Irani, onde mantinha relações de amizade com posseiros ocupantes das terras de uma empresa frigorífica”. (Gallo, p. 83)
            Outra informação preciosa da mesma autora é que José Maria teria acompanhado “as forças revolucionárias de 1893, combatendo e fazendo reconhecimentos, e que gozava de prestígio entre seus companheiros combatentes por sua valentia, porque, ‘acutilando como um doido, causou tal espanto no inimigo, que este retirou-se em desordem apesar da superioridade numérica”. (Gallo, p. 84) A autora se baseia no artigo “O monge José Maria, um pobre diabo ou um verdadeiro revolucionário perigoso?”, publicado pelo jornal Correio da Manhã um dia antes do Combate de 1912 no Irani, em 21.10.1912. (p. 107)
            Cabe destacar aqui a origem do povoamento de Irani. Informa o site do IBGE: “O município de Irani, localizado no meio oeste catarinense, começou a ser desbravado e ocupado no início do século XIX, por fazendeiros e colonos oriundos principalmente do norte do Rio Grande do Sul, que transformaram o cotidiano da população local. Esta época foi marcada pelo predomínio dos coronéis, que dominavam a região do Irani. Entre os colonizadores destacam-se: Leopoldino Fabrício das Neves, Dinarte Antunes, Pedro Kades, Alexandre Telles e Miguel Fabrício das Neves”. No site da Prefeitura do Irani: “O território do município de Irani começou a ser desbravado e ocupado no início do século XIX, por fazendeiros e colonos oriundos principalmente do norte do Rio Grande do Sul.”      
(Por Celso Martins, outubro de 2011)

Fontes
Histórico de Irani. Site do IBGE.
GALLO, Ivone Cecília D’Ávila. O Contestado – O sonho do milênio igualitário. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999.
LEMOS, Alfredo de Oliveira. A história dos fanáticos em Santa Catarina e parte de minha vida naqueles tempos. 1913-1916. Passo Fundo: Berthier, 1989.


São João Maria no Confraria do Monge (Lages-SC).
Escultura de Nelson Neves Matias. Foto: Celso Martins

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Crônicas do Irani (2)
Fala Antônio Martins
Fabrício das Neves

 Antônio Martins Fabrício das Neves. Irani, 2007. Foto: Margaret Grando

No dia 17 de outubro de 1990, o senhor Antônio Martins Fabrício das Neves foi entrevistado pela professora Eunice Cadore Franzack em sua residência na Fazenda Bela Vista, no Irani-SC. A entrevista gravada foi transcrita por Dylce Joana Weirich e se encontra no Museu Histórico de Concórdia-SC.
Nascido em 13 de junho de 1922, filho de João Damas Fabrício das Neves e de dona Gertrudes Martins de Lima, Antônio cresceu ouvindo relatos do entrevero e seus personagens. Nos anos 1930 ele colocou em versos as informações recolhidas.

O que ele diz sobre José Maria, José Fabrício das Neves e o combate de 1912?

Fabrício era “um dos de mais confiança” do monge. “Até o José Maria disse que ajudou muito ele nesse ideal de colonização, então depois ficaram muito conhecidos, muito amigos. O José Maria tinha ele como um assessor dele, mas um assessorava o outro porque não tinha um posto maior que o outro”.

No dia do combate José Maria disse a José Fabrício “que se era para morrer gente ele ia morrer”, pois não ia deixar “essa coloniada tudo aí na frente e eu ficar lá atrás, e nós temos que ir na frente”.

José Maria “não falava” do monge João Maria, “nunca falou”. Era uma “pessoa que só pensava para o bem, ele, acho que ele era mesmo um legítimo monge”. Era um “um homem muito inteligente, muito, ele falava onze línguas e rezava uma missa como os padres antigos rezavam”. Rezou uma missa no Irani antes da batalha. “Diz que previu que ia morrer por que ele disse para o Fabrício – eu vou morrer, mas você não passe do meu sangue que você vai ser um herói no mato. Agora se você vai para a cidade... No campo você vai ser um gato, no mato você é uma onça e no campo você é um gato. Não passe”.

Disse ainda José Maria a José Fabrício: “Venha até onde nós brigamos e vencemos e volte para trás, não passe do nosso sangue que nós derramamos. Mesmo porque daí você só vai mal. No mato você é uma onça e lá no campo você é um gato. Então, respeite isso aí. E foi o que aconteceu, o Fabrício se iludiu, passou, e aconteceu terminando morrendo”. Nos versos que escreveu Antônio se refere a tigre no lugar de onça.

Num determinado momento Eunice pergunta qual o motivo do Combate do Irani. Segundo Antônio, circulam “muitas idéias” a respeito, “mas o que o povo sem estudo aqui previa no mato eu concordo que eles estavam certos”. Ou seja, “havia qualquer interesse sobre aquele terreno, e esses general lá, esses comandante do Exército”, precisavam de um motivo “para não vir simplesmente vir aqui matar ou fazer o que eles queriam, inventaram aquilo”. Inventaram que “estavam formando um reduto de jagunço, a santidade”, o que provocou “um escândalo aqui no sertão”.

Segundo o depoente, “não era verdade”, porque “esse José Maria era um homem de muito estudo de muito respeito, e eles tinham ele como um bandido, mas bandido que não tinha morte, não houve nada”. Existiam na época “centros de colonos trabalhando com eles aí a espera da iniciativa que eles tinham. Então eu acho que nesse combate aí havia algum interesse particular”. De quem? Pergunta a professora Eunice. “Eu acho que de alguns prevendo não deixar eles fazer o que eles queriam”, destaca, “que era a posse da terra para todo mundo”.

Naquele tempo, observa Antônio Martins Fabrício das Neves, nas regiões de Palmas, Curitibanos e “na costa do mar”, “já tinha essa gente muito rica, tinha esses donos que trabalhavam na estrada de ferro, porque eles já queriam colonizar. Então eu acredito que o pessoal ficou nessa suspeita, que houve isso por causa do próprio terreno, não foi por outra coisa”.

Questionado sobre problemas ocorridos em Palmas quando um grupo de moradores foi buscar títulos de terras, Antônio confirmou que o cartório de Palmas pediu que José Fabrício fosse até lá, que “ajudava e fazia o possível de documentar todo esse pessoal que ele levasse”. Porém, continua, “o interesse de outra gente, de algum, o interesse de algum outro pegar aquela frente que o Fabrício estava praticando, para fazer a colonização. Tudo isso era o nosso povo, a fabriciada daqui como a senhora dizia, ficou nessa suspeita, e eu concordo com eles que isso quase que seria uma realidade”.

Um dos autores mais respeitados no tema Contestado, Maurício Vinhas de Queiroz, parece ter bebido na mesma fonte do senhor Antônio Martins Fabrício das Neves para escrever o capítulo sobre o Combate do Irani em seu livro “Messianismo e conflito social”.

Neste livro, resultado de pesquisas entre os anos de 1953 e 1961, Queiroz enfatiza a ocupação dos campos do Irani por famílias vindas do Rio Grande do Sul após a Revolução Federalista e os interesses do coronelismo de Palmas. “José Maria há muito conhecia o povo do Irani. Considerava-o sua gente. Não é de estranhar que, perseguido” em Santa Catarina, “tenha surgido” em outubro de 1912 “no chamado Faxinal dos Fabrícios”. (QUEIROZ, p. 91-92) (Por Celso Martins, outubro de 2011)

Fontes
1) Transcrição da entrevista de Antônio Martins Fabrício das Neves a professora Eunice Cadore Franzack (Fazenda Bela Vista, Irani-SC), em 17 de outubro de 1990, existente no Museu Histórico de Concórdia-SC.
2) QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social – A guerra sertaneja do Contestado. São Paulo: Ática, 1981. 

José Fabrício das Neves (a direita, de branco) com seu estado-maior em Catanduva-SC (1919). Reprodução: Celso Martins. Acervo: Cecília B. Talim (Concórdia-SC). 

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

 O COMBATE DO IRANI

 Cemitério do Contestado no Irani. Novembro de 2011. Foto: Celso Martins

Apresentação

Iniciamos a publicação de uma série de “Crônicas do Irani” discutindo alguns momentos do Combate de 1912 no Banhado Grande do Irani, marco inicial da Guerra do Contestado.
Não se trata de uma compilação de informações publicadas em outras fontes. As bases da série são 30 entrevistas com antigos moradores do Meio Oeste catarinense e do Sudoeste do Paraná, um depoimento do Sr. Antônio Martins Fabrício das Neves ao Museu Histórico de Concórdia e o Processo do Irani (518 páginas) cedido pelo professor Paulo Pinheiro Machado (UFSC).
O uso destas fontes levou à construção de outra “história” do Combate do Irani, revelando personagens quase absolutamente desconhecidos e ausentes da historiografia do Contestado, e os elementos motivadores: a luta pela terra e não por questões de limites entre Santa Catarina e Paraná.
Grato
Celso Martins



Crônicas do Irani (1)
Motivações de um combate

Por Celso Martins*

Ao longo do ano permanecem discretas, com suas folhas alongadas e pontudas, mas quando chega a Primavera e se aproxima o dia de Finados, as flores brotam com uma singela exuberância, enfeitando o Cemitério do Contestado, no município do Irani, região do meio-oeste catarinense. Ao lado existe um museu e, mais adiante, o local do combate de 22 de outubro de 1912, estabelecido pela historiografia como o marco inicial da Guerra do Contestado.

O lugar é conhecido como Banhado Grande do Irani, Faxinal dos Fabrício, símbolo da presença das famílias vindas da região de Passo Fundo-RS, entre fins do século 19 e início do século 20, área indicada a eles por um “monge” – entre os rios do Peixe, Iguaçu e Uruguai. Quase todos estiveram envolvidos nas lutas ocorridas no Sul do Brasil entre os anos de 1893 e 1895, episódio conhecido como Revolução Federalista.
Eram quase todos, maragatos ou federalistas, antigos liberais no Império, muitos dos quais pegaram em armas contra o domínio de Júlio de Castilhos. Derrotados e perseguidos de alguma forma no pós-conflito, buscaram refúgio nos campos do Irani, entre Concórdia-SC e Palmas-PR, dedicando-se ao plantio de milho associado à criação de porcos, à pecuária, à extração da erva-mate e a coleta do nó-de-pinho. Adotavam a antiga religiosidade católica simbolizada pelo culto a São João e ao Divino Espírito Santo.

A prosperidade e a paz iniciais foram quebradas por um fenômeno chamado capitalismo, momento em que a terra que tinha valor de uso passa a ter valor de mercado. As mesmas terras que antes pertenciam à União (Império), com a República passam às mãos dos estados e rapidamente repassadas a empresas interessadas na colonização e na exploração das riquezas naturais, sobretudo a madeira, os pinheirais.

Os antigos habitantes da região, brasileiros outrora estimulados pela política oficial do uti possidetis, ou a posse como garantia de ocupação e conquista de territórios reivindicados pela Argentina, tiveram seu modo de vida desestruturado, as relações sociais como as de compadrio abaladas ou mesmo rompidas em muitos casos. O caboclo que garantiu aquelas terras para a Nação, fonte de fartura alimentar, vestuário e moradia, se vê ameaçado em seu presente e futuro.

Não são apenas os ecos da modernidade que chegam aos sertões. As bases desta mesma modernidade, ou do capitalismo nascente, se transferem para estas áreas anteriormente “esquecidas” pelo poder público e pela própria Nação. É o fermento da revolta. João Maria anunciara o Apocalipse próximo em suas peregrinações, fizera profecias do que estaria por vir – a ferrovia, a extração mecânica de uma quantidade descomunal de pinheiros e outras árvores nobres, o cercamento e a demarcação das terras e sua venda a famílias vindas do Rio Grande do Sul.

Momento em que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, como dizia Marx, ou seja, quando nada do que foi será, o prolongado instante de transformação da paisagem, dos hábitos e costumes, das relações familiares, religiosas, sociais e econômicas.

Com os homens e mulheres do Irani as coisas não foram diferentes. Fazendeiros de Palmas, então a região mais importante do interior do Paraná, escrituram as terras dos campos de Palmas até o rio Uruguai. Entre estes “posseiros” estão os Fabrício das Neves, sobretudo José, parceiro de José Maria de Castro Agostinho. Ao contrário do que a historiografia e as más-línguas tentam impor, José Maria não era nenhum desequilibrado, não existem provas de ser desertor, nem de defloramento em Palmas.

 
Invasão

O que temos são relatos como os de Antônio Martins Fabrício das Neves, confirmando a presença de José Maria entre os moradores do Irani. Também existem registros de sua presença em Palmas e outras cidades do Paraná. Outros relatos situam o monge como amigo do coronel Miguel Fragoso, na região de Engenho Velho, atual Concórdia. Sua presença em Campos Novos se dá apenas em fins de 1911, depois vai a Taquaruçu (Curitibanos), onde fica até setembro, quando volta ao Irani.

José Fabrício estava com ele e oferece hospedagem ao grupo de 40 pessoas, aproximadamente. Em seguida todos se estabelecem na casa de Thomaz Fabrício das Neves (irmão de José Fabrício), seguindo por último para a residência de  um tio de ambos, Miguel Fabrício das Neves, onde se estabelece o reduto.

A chegada de José Maria no Irani, disposto a resistir às ameaças de expulsão das famílias ali estabelecidas, foi a senha para que os fazendeiros de Palmas entupissem os jornais de Curitiba alarmando a população: tratava-se de uma invasão de catarinenses ao território paranaense visando forçar o cumprimento de sentenças judiciais entregando a região ao estado vizinho, Santa Catarina. Criou-se um estado de comoção. Estudos realizados no Paraná indicam a intensidade da campanha desenvolvida a partir de Palmas.

A partida da força policial do Paraná para a região do Irani, sob o comando do coronel João Gualberto, oficial ilustre e de largo preparo militar, representou a oportunidade para os fazendeiros de Palmas se verem livres dos “posseiros” dos campos do Irani. A antiga Questão de Limites foi usada com habilidade para a consecução de objetivos escusos. O coronelismo nascente e dominante na Primeira República dava as cartas, como deu as cartas em todo o episódio do Contestado, envolvendo os militares na carnificina e, mais recentemente, culpando a ferrovia por tudo que aconteceu na região.

As flores que anualmente inundam de branco o Cemitério do Contestado no Irani, lançam os primeiros brotos por volta do dia 22 de outubro, como a homenagear os combatentes mortos há 99 anos. As pontas das folhas que terminam em espinhos abdicam do aspecto ameaçador exatamente nesse período em que lembra os mortos. A vida celebrando aquele que deu a vida na defesa de seu chão.  (Por Celso Martins, outubro de 2011)

Fonte
MARTINS, Celso. O mato do tigre e o campo do gato. José Fabrício das Neves e o Combate do Irani. Florianópolis: Insular, 2007.

*Celso Martins da Silveira Júnior, Laguna-SC, 23.11.1955. Jornalista (desde 1976) e historiador (2003-2007, Udesc). Autor de “Os Comunas – Álvaro Ventura e o PCB Catarinense” (1995), “Farol de Santa Marta – A esquina do Atlântico”, (1997), “Aninha virou Anita” (1999), “Tabuleiro das Águas” (2001), “Os quatro cantos do Sol – Operação Barriga Verde” (2006) e  “O mato do tigre e o campo do gato – José Fabrício das Neves e o Combate do Irani” (2007), entre outros. Atuou nos seguintes veículos: jornais O Estado, A Notícia, Jornal de Santa Catarina, A Gazeta, Bom Dia Domingo, Diário Catarinense (Diários Associados) em Florianópolis e diário Extra de Joinville; revista Mural; rádio Guarujá; TV Barriga Verde. Contato: celsodasilveira@gmail.com.